por Gabriel Kolyniak

Eu conheci a Rita há alguns anos, por intermédio do Julio Bittar, que é um poeta e pintor que mora ali perto da Consolação, em São Paulo. Naquele tempo, eu ia quase que diariamente à casa do Julião, com quem eu passava boas horas conversando, falando de poesia e tocando algumas canções – ele no violão e na voz, eu na gaita ou na flauta, dependendo da canção escolhida. O repertório era formado principalmente por canções românticas brasileiras, aquelas também conhecidas como música brega, e também por algumas dos Rolling Stones.
O Julio sempre me falava que eu tinha que conhecer a Rita, a Ritinha, a Rita Medusa, que a Rita era ótima, que a Rita escrevia bem pra caramba, que eu tinha que ver os poemas da Rita, e assim por diante. Aí eu vim a conhecê-la num dia em que eu e o Julio fomos a um protesto contra o Kassab, então prefeito de São Paulo, quando aquele infame prefeito queria proibir a atividade dos artistas de rua. O Julião puxava o coro, com a voz forte dele: “Um, dois, três, Kassab no xadrez!” A memória me confunde um pouco, não sei se a ouvi falando seus poemas logo na primeira vez que a gente se encontrou ou depois. Mas de qualquer forma, em algum momento eu já estava habituado à densidade de seus versos e à agitação que caracterizava o convívio com ela, entre cervejas e vinhos, poemas e gargalhadas.
A Rita Medusa é uma figura rara mesmo. Ela é formada em psicologia, e vive envolta pela escrita. Nos seus textos – poemas, cartas, recortes de prosa – ela muitas vezes se dirige a alguém que nem sempre é muito claro quem é; pode ser que ela esteja se dirigindo a uma pessoa que ela ama secretamente, pode ser que ela esteja se dirigindo à sua própria sombra, pode ser que secretamente ela ame sua própria sombra… Mas é este espaço entre “eu” e “tu” que ela preenche com uma poética errante, complexa, retorcida, como no poema “Nervos secretos”:
vou guardar teu nome para um pensamento vilão uma sede escancarando constelações nas margens tristes pedaços do teu cheiro no meu travesseiro curvo gravidez indesejada na minha fábrica de seivas não venha na minha nudez de mantos roubados não me perdoe na noite de sabedorias imundas um pacto santo penetra a noite vou adiante com o poente nos nervos
Naquela época, a Editora Córrego ainda não estava aberta, mas a Revista Córrego estava a todo vapor. Eu e meus amigos que fazíamos a revista costumávamos trabalhar duro até tarde para produzir cada número, revisando os textos, discutindo a pertinência de publicar cada um deles, pensando em quem convidar para escrever, o que colocaríamos na capa, se mudaríamos algo no projeto gráfico… E várias vezes eu convidei a Rita para publicar pelo menos um poema na revista, sem sucesso. Depois, com a editora já fundada, era difícil convencer a Rita a reunir seu trabalho em um livro e ter este livro editado. Ela sabia que eu queria publicá-la, nossos amigos diziam que ela tinha que ser publicada, mas ela sempre se esquivava, dizia que sim, que faria, que tinha que fazer, mas parecia que aquilo não caminhava.
Passaram-se alguns anos. A Paloma Klisys foi quem conseguiu convencer a Rita a finalmente publicar seus poemas, com base em muita insistência. E foi aí que apareceu o Hipnose para um incêndio. A Rita trouxe aqueles poemas para nós, e dedicamos uma sessão do grupo de leitura da Biblioteca Roberto Piva a ler os poemas dela em grupo. Era impressionante a reação do pessoal: cada poema causava frisson, deixava todos boquiabertos, provocava exclamações de admiração – a ponto de ao final de cada poema, o pessoal fazer um pequeno coral: “Rita, Rita, Rita!”.

Pois bem, fizemos a edição do livro. Ele pode ser comprado em nossa loja virtual. Ela já me trouxe tudo bem organizado. Havia ilustrações de sua lavra, criadas com uma ferramenta digital, que apresentam figuras humanas com muita condensação de significantes e significados. Eram muitas ilustrações, então eu tinha que escolher algumas delas, e para isso usei em primeiro lugar um critério frustrantemente pouco poético: só entrariam as imagens inteiramente P&B, já que eu não tinha orçamento para imprimir ilustrações coloridas. Vou aproveitar que estou escrevendo este texto para mostrar algumas das ilustrações a cores, que não entraram no livro:
Vou chamar esta de A sereia-vampira. A cor roxa parece evocar o prolongamento temporário das entranhas. Esse pássaro me intriga bastante. Será uma alusão às feiticeiras ancestrais que tinham nas aves seus aliados secretos? Mais feitiçaria com pássaros. Uma cena de chapação para atenuar o clima bruxesco.
Outra coisa que a Rita trouxe pronta foi a proposta de capa. Ela foi feita pelo André Kitagawa, que fez um trabalho excepcional, que me lembrou as capas da HQ Cripta do Terror. Isso de certa forma tem bastante a ver com a atmosfera densa, entre o delírio, o sonho e o pesadelo de sua poesia. Vários dos meus interlocutores ficaram em dúvida com a adoção dessa capa, não pela qualidade da ilustração, mas justamente pela associação com esse universo da HQ, mas depois de pensar bastante eu decidi que sim, era essa a proposta gráfica que teria a ver com a forma de apresentar a Hipnose para um incêndio.

Para encerrar a apresentação desse livro, mostro aqui o poema de abertura, “Anjo disfarçado de leão”:
Mede a altura do tombo pra calcular o tempo que restará pra contar quantas magnólias foram detidas nos dentes uma tentativa divina de explicar a primavera para pequenos roedores a montanha desenhada na nuca o plano de fuga traçado no sangue os tornozelos como garças em pontes levadiças o último sonho com éter de um velho de 20 anos tentando casar-se com uma ideologia de resgate amontoando cigarras no peito contando sua versão de muros grafitados uma alegria solitária de aflitos me explicando que o remédio não impede que a dor orquestre cada movimento e altere os ângulos quando o mundo devora a trama que não mais sustenta teu esqueleto suspenso nas alturas